O TEMPO PERTENCE AOS DEUSES

"A fotografia é um pedaço de tempo que passou, mas que guarda a nossa marca, é um pedaço de nós. Ela é sempre um atestado de presença para quem a produziu e para quem aparece nela. Naquele pedaço de papel está gravada uma parcela da nossa vida.

O que somos, de onde viemos e para onde vamos – eis as questões maiores que a humanidade coloca desde sempre. A fotografia não responde a essas perguntas tão profundas, mas, passando do plano filosófico à vida cotidiana, ela nos dá pistas do que somos, ao mostrar o que fizemos, como indivíduos e como sociedades. Do álbum de família aos arquivos e coleções de grande porte, as fotografias descortinam, a quem sabe ver, o caminho percorrido pelas pessoas e pela sociedade.

Ao colecionar fotografias, estamos, portanto, conservando uma parte da vida que, só por ter virado foto, já é memória, saudade. Nas coleções está presente o testemunho do nosso pertencimento a uma família, a uma cidade, a uma época a uma determinada cultura. Não é um depoimento estático e acabado, como uma certidão de cartório, mas, sobretudo, uma fonte inesgotável de informação, porque o conteúdo de uma imagem depende da cultura de quem a ‘lê’, do momento e do contexto que ela é analisada. Enfim, a fotografia é um passaporte para conhecer, lembrar e sonhar.

E, de repente, essa viagem ficou vertiginosamente rápida, com a entrada em cena da imagem digital e de seus meios de produção, principalmente os telefones celulares. A cada ano serão bilhões de imagens que se suplantarão umas as outras quase que instantaneamente, não nos dando tempo de conhecer, com as lembranças sendo substituídas tão rapidamente por outras tão iguais que o sonho parece se esvair em uma embriaguez de estímulos tornados inócuos pela pasteurização da própria escala de produção.

O 'álbum de retratos' passou a ser virtual, permanentemente exposto e interativo. Com o advento do fotolog, não mudou apenas o suporte, mas também a função do 'retrato', a dimensão da lembrança. A velocidade da produção, exposição e consumo de imagens que engolem umas às outras cria um processo de colagem que, em lugar de alimentar a memória, apaga a lembrança.

O tempo sempre pertenceu aos deuses. A fotografia, ao reter o instante, surgiu como uma dádiva, um instrumento mágico da recuperação da coisa vivida. É uma afirmação da objetividade científica, quase como uma subversão no fluxo da existência. Na vertigem da substituição permanente de imagens que não chegam a se consubstanciar – nascem pixels já condenados a serem deletados, como borboletas informáticas – acabamos por não mais guardar o instante vivido. Ao produzirmos imagens aos bilhões e ao as descartamos aos bilhões, banalizamos a dádiva, e devolvemos esse pedaço de tempo aos deuses. E lá se foi um pedaço de nós."

Por Milton Guran
Photo Magazine, maio/jun. 2005