LIVRO DA VEZ - EU SOU UM GATO

Desde que meu gato, o Dartagnan se apossou de mim – sim, porque ele é que era meu dono –, o universo felino passou a despertar em mim uma curiosidade e interesse enormes. O gato é simplesmente intrigante! Seu ar misterioso... sua pose elegante... seu olhar enigmático... Não demorou muito para eu me interessar por qualquer obra – seja livro, filme, desenho, fotografia - sobre gatos ao meu alcance. No caso dos livros, descobri que há muito que se ler sobre gatos. Afinal este universo cheio de charme é um prato cheio para qualquer autor. São obras que falam de gato, obras com imagens de gatos, obras que tentam desvendar seus mistérios, obras que tentam reproduzir seus pensamentos e ações.

Passaram pelas minhas mãos recentemente, dois livros sobre gatos. Um deles é dedente d'além mar e ainda estou lendo (falo dele mais tarde). O outro, eu apenas folhei em um de meus pit-stops pr'um Nespresso na Livraria Cultura, mas como já gostei de vários trechos, já deixo a dica aqui pra vocês.

Bom... O felino, mais do que qualquer outro animal, demonstra uma segurança de si e um ar de 'sim, eu sei!', como se fosse - e sempre tivesse sido - um filósofo. Filósofo este que, por já ter vivido tanto com suas 7 vidas, nos passa a impressão de ter sempre algo de surpreendente a nos contar. Algo do qual nada sabemos ainda.

E se soubéssemos, então, o que seria este algo? E se tivéssemos como saber o que se passa na cabeça deste filósofo? É o que o romance 'Eu Sou um Gato', escrito pelo autor japonês Nasume Soseki, tem para nos contar.

Finalmente lançado em português ano passado, 'Eu Sou um Gato', foi escrito originalmente em 1905, mas apesar disso traz as, ainda atuais, impressões cínicas de um gato vira-lata que não mede ironia e pessimismo ao ser impiedoso com a espécie humana. Nem seu mal-humorado dono escapa. Escrito na primeira pessoa, muitos críticos afirmam que o livro, na verdade, nos leva a uma viagem quase que autobiográfica. Como se Soseki (pseudônimo usado pelo autor, que em japonês quer dizer 'estorvo'), elegesse o gato como perfeito porta-voz de suas emoções e traumas pessoais nesta jornada filosófica. Não resistindo ao trocadilho, deixo vocês com uma pequena amostra da língua 'ferina' deste 'felino'... É de dar água na boca!


Trechos de 'Eu Sou um Gato' [488 págs., Ed. Estação Liberdade]:

Eu1 sou um gato. Ainda não tenho nome. Não faço a mínima idéia de onde nasci. Guardo apenas a lembrança de miar num local completamente sombrio, úmido e pegajoso. Deparei-me nesse lugar pela primeira vez com aquilo a que comumente se denomina criatura humana. Mais tarde, descobri que era um estudante-pensionista, a espécie considerada mais malévola entre todas essas criaturas. Contam que por vezes esses humanos denominados estudantes nos agarram à força para nos comer fritos. Na época, ignorando esse fato, não me senti intimidado. Experimentei apenas uma agradável sensação quando o humano me soergueu com gentileza, pondo-me sobre a palma da mão. Aconchegado nela, pela primeira vez na vida encarei o rosto de um desses seres. Preservo até hoje na memória a impressão desagradável daquele momento. Em primeiro lugar, o rosto, que deveria estar coberto de pêlos, revelava a lisura de uma lata de remédio. Em nenhum dos muitos de minha espécie com os quais mais tarde me deparei observei essa horrenda deformação física. (...) Raramente meu amo se digna a me encarar. Ele parece exercer a profissão de professor. Ao voltar da escola, passa o restante do dia trancado em seu gabinete, praticamente não coloca os pés para fora dele. Todos da casa o consideram muito estudioso. O professor também gosta de exibir seu apego aos estudos. Contudo, na realidade, ele não é tão diligente como o julgam os habitantes desse lar. Por vezes, adentro de fininho o gabinete para espiar, e quase sempre ele está em plena sesta. Em algumas ocasiões, baba sobre o livro que está lendo. (...) Essa é a rotina de meu amo todas as noites. Mesmo sendo um gato, há momentos em que pondero sobre as coisas. Não há nada mais simples do que a vida de um professor. Pudesse eu renascer na forma humana, desejaria ser um mestre. Se é possível dormir tanto nessa profissão, é sinal de que até mesmo um gato pode exercê-la. Apesar disso, meu amo diz que não há profissão mais árdua do que a de um docente, e costuma se queixar dela a todos os amigos que o visitam. (...) Minha vida cotidiana é de total tranqüilidade. Os humanos, por mais humanos que sejam, não prosperarão para sempre. Esperemos pois, pacientemente, o advento da era dos felinos.”

-------------------------------------
1. No original, "Wagahai wa neko de aru", que dá título ao livro. Das muitas formas de dizer EU em japonês, Soseki optou pelo pronome de primeira pessoa "wagahai", cujo uso era restrito a políticos, militares, etc., e se revestia de certa arrogância.